Por uma virada conceitual do Esporte contra o realismo capitalista


    
                                                                                        Neilton Ferreira Júnior

              Que é o Esporte afinal? Parafraseando Santo Agostinho, "se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quero explicá-lo a quem me pede, já não sei" (1). No campo sempre nebuloso da conceituação do Esporte impera a ideia "contrária às generalizações", segundo a qual é necessário estabelecer distinção entre Esporte de Alto Rendimento, Esporte de Participação e Esporte Educacional. Com isso, confere-se ao primeiro fenômeno a mesma legitimidade e distinção dos demais. Ainda assim, tal distinção busca exprimir não mais que os objetivos de que se servem aqueles que se envolvem direta ou indiretamente com os Esportes.

         A questão, portanto, permanece latente, aberta, e não cessa de retornar à superfície em ocasiões chave, quando, por exemplo, a questão do trabalho infantil se confunde, ou é nublada por concepções como "iniciação esportiva precoce".


             

            O que a discussão do conceito não raro suscita, principalmente entre os entusiastas ingênuos, é a defesa sempre apologética e metafísica dos "valores inerentes ao Esporte". Condição que nos oferece não apenas uma pista sobre a raíz epistêmica constitutiva das concepções hegemônicas de Esporte, mas sobre as razões do esporte organizado compreender um ambiente refratário às lutas de classe, à crítica sociocultural e à disputa política por seus rumos. Conforme o próprio Pierre Coubertin já dizia, em oposição à crítica socialista, "o Olimpismo perturba os partidários da luta de classes", defendendo com isso que o Esporte seria "por si mesmo" um campo de produção não de "condições iguais, mas de relações iguais"; como se tais instâncias não fossem interdependentes (2).

           Nesse espaço (limitado) de abstração, os reducionismos e naturalizações vigoram absolutos, protegidos pela força residual de um liberalismo clássico, cujos princípios servem não mais do que à cristalização desta prática cultural. Condição que, conforme propôs Fanon, deveria ser fundamentalmente diferente nas periferias do capitalismo global. Segundo o autor, o Esporte deveria ser pensado desde as periferias como "obra inacabada", mutável, aberta, à serviço da construção do nacional, da superação da dominação burguesa e do capital, não um instrumento da reprodução do último.

          Meu ponto, caro leitor, é que por maior que seja o "vazio" conceitual sobre o que vem a ser o Esporte ou que prevaleça a ideia de que "bastam os pontos de vista diferentes", há sempre algo preenchendo a sua prática corporal e discursiva. Esse "algo" se refere justamente às ideias dominantes de uma época, a saber, as ideias da classe dominante. Cabe reiterar que Esporte não se refere apenas a práticas corporais. Trata-se, sobretudo, de práticas discursivas, por sua vez carregadas de um regime ideológico específico (3). O primeiro exemplo do que vem a ser o realismo capitalista se encontra justamente no fato de que, uma vez capturado pelo capitalismo, o Esporte já não pode ser experimentado de outra forma que não na forma mercadoria. O espetáculo esportivo contemporâneo compreende a forma mais viva (e celebrada) de um contínuo processo de legitimação de uma racionalidade neoliberal, que hoje encontra na busca incessante pelo record a própria poética e pedagogia da sociedade do desempenho (4). O atleta, conforme demonstram Pierre Dardot e Richard Laval, seria a nossa prova viva de que sempre é possível dar mais de si, empreender mais, apesar da exaustão e do precário (5)

               Na era do espetáculo a que estamos submetidos, o espaço do sentido humano da experiência esportiva está associado a um afastamento contemplativo, a uma virtualidade de envolvimento que se distingue por seu grau de flexibilidade ética acerca dos limites. No realismo capitalista esportivo, o compromisso do expectador/consumidor se reduz ao gozo proveniente de uma confiança/aposta depositada em seu "avatar", o atleta. O espetáculo da destreza atlética, inclusive, desempenhado hoje um papel fundamental na contemporânea "economia da atenção", suspendendo o debate sobre as possibilidades do corpo na cidade, sobre o direito à cidade, favorecendo a especulação imobiliária, a gentrificação e a ocupação privada de espaços públicos.

    O realismo capitalista esportivo não é espaço-tempo da suspensão da razão, mas sim da redução da noção de razão à racionalidade empresarial. Racionalidade que transforma expectadores, atletas, instituições esportivas em infraestruturas de manutenção da acumulação privada. Uma vez gestado no e pelo realismo capitalista, o Esporte deixa de ser mera "representação do social" para ser o próprio social esportivizado. Espaço-tempo da livre circulação e legitimação de imagens do sacrifício, da  luta contra o tempo, da concorrência desregulamentada, da naturalização celebrada das hierarquias de classe, sexo, raça e nação. Seria ainda o espaço-tempo da recepção de experiências cada vez mais deletérias de exploração da força de trabalho e da maximização do desempenho como moral indispensável à adaptação na agora sociedade do todos contra todos.

            Não é que não exista um conceito de Esporte. Pelo contrário, a academia produziu vários, na tentativa de expressar sua "essência", dinâmica e forma. O problema, penso, é que as conceituações disponíveis tendem a enfatizar do fenômeno não mais que sua racionalidade instrumental capitalista e disciplinar, deslocando a dimensão da vontade, dos desejos, das identidades políticas para um plano marginal, "fora" dos interesses de acumulação. O fato de centenas de atletas, perante milhares de expectadores (desejosos ou prostrados), serem convocados à arriscarem suas vidas para disputar competições em meio a uma crise de saúde global, só faz reforçar o argumento até aqui defendido. Em outras palavras, o corpo da sociabilidade esportiva neoliberal só pode ser corpo do sacrifício, do teste de resistência levado às últimas consequências, da legitimação de uma política esportiva reservada a poucos praticantes, mas aberta a muitos expectadores.

           O valor, segundo esta racionalidade, repousa dobre o desempenho e não sobre o corpo do desempenho. O corpo do desempenho é concebido como meio, não fim. Isso só ocorre porque a superexploração da força de trabalho do atleta contemporâneo se caracteriza também pela possibilidade da sua substituição imediata. É público que o espetáculo esportivo se sustenta de um imenso exército industrial de reserva constiuído na esteira das chamadas "formações de base" e projetos de "educação pelo espote", salvo raras exceções. Envolvido pelo véu da concepção apologética a que nos referimos há pouco, o Esporte vai assim se desenvolvendo como um "bem-em-si", um "tempo-a-parte", mas principalmente como técnica e instrumento da acumulação sustentada pelos sonhos-de-ser-e-estar de milhares de jovens, na sua maioria pobres, na sua maioria pretos.

              Não foi muito diferente quando séculos atrás o fenômeno Esportivo se apresentava como uma "experiência para depois trabalho" e de "educação da aristocracia europeia herdeira das colônias". A ideia de laboratório, de não-lugar, de reserva de classe, permanece em cartilhas de agências "internacionais" convenientemente esvazeadas de conceito, ao mesmo tempo que carregadas de práticas discursivas representantes da racionalidade vigente. Nas periferias do capitalismo, por exemplo, o Esporte segue sendo concebido como instrumento de desenvolvimento do subdesenvolvido; ao passo que nos países centrais ele se estabelece como instrumento de afirmação do seu poder econômico e cultural. Para os primeiros, as Agências Internacionais reservam "pacotes" voltados à "promoção da paz", garantindo com isso as condições políticas de manutenção da superexploração das ex-colônias. Os últimos, por sua vez, se apresentam como "modelos nacionais" a serem seguidos, os quais contam com um contingente enorme de representantes, responsáveis por sair pelo mundo a partilhar o "bem-sucedido expertise".

         Não será este o momento de tecer considerações sobre o papel do imperialismo e neocolonialismo cultural. Certo é que, de algum modo, estamos todos inseridos em uma dinâmica que nos oferece pouco ou quase nenhum espaço alternativo à imaginação política e às proposições conceituais que nos levem para além do realismo capitalista (6). Tentando escapar ao recurso niilista e resignado, compreendo que a possibilidade de superação deste regime de produção cultural restrito à lógica e finalidades de mercado pode se dar mediante aquilo que chamo de contra-instrumentalização da cultura esportiva.

          Mais do que a elaboração de um "bom conceito", o movimento de contra-cultura esportiva carece de bons ensaios. Ensaios que permitam a integração intersexo, intergeracional, transnacional, mas que fundamentalmente escapem às determinações do dinheiro e dos monopólios de mídia. Esses ensaios conceituais e práticos devem retomar e ressignificar a concepção artístico-política de performance originalmente pensada por Coubertin. Devem fazer parte das identidades culturais e subculturas urbanas, tal como o hip-hop, o grafite e o basquetebol uma vez o fizeram, tornando-se não só expressões de ocupação, mas de reconfiguração dos espaços urbanos.

        A contraposição ao realismo/razão/instrumentalidade empresarial/capitalista do alto rendimento é tão urgente quanto tardia, uma vez que nos encontramos em plena fase da ruptura entre corpo e desempenho.  Vivemos numa era em que o atual regime de produção do espetáculo Esportivo (que tem na quebra de records a sua razão de ser) caminha rapidamente para a substituição do atleta de carne e osso pelo atleta híbrido, trans-humano, pós-humano; dado que o limite do record se encontra justamente no corpo humano e não mais nas tecnologias disponíveis. Em oposição, a contra-cultura esportiva irá se basear na desaceleração, na retomada da cidade pelo corpo, na disputa pelo tempo livre e, inevitavelmente, na redução da jornada de trabalho.

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Arte: No Ball Games, por Banksy.

(1) MARCONDES, Marcondes. Tempo e história: a dialética do tempo segundo Santo Agostinho. Cadernos de Psicanálise, v. 41, n. 40, 2019.

(2) COUBERTIN, Pierre. Olimpismo - Seleção de textos. Rio Grande do Sul: EdiPUCRS, p. 204, 2015.

(3) HALL, Stuart. Centralidade da cultura. Educação & Realidade, v. 22, n. 2, 15-46, 1997.

(4) HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

(5) DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

(6) FISHER, Mark. Realistic capitalism: is there no alternative? London: Zero Book, 2009.


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