Por uma política da ludicidade e da reorientação ideológica contra a desumanização neoliberal - parte I


Neilton Ferreira Junior

Vivemos um período de retrocesso marcado por políticas de subtração de direitos, violência extrema, aprofundamento da depredação ambiental e flagrante precarização da vida. Situação que muitos analistas vão classificar como resultado da radicalização e transmutação de um sistema capitalista que, a partir dos anos 1970, assumiu forma neoliberal. Forma que, segundo os sociólogos Pierre Dardot e Cristian Laval, tem sua origem ainda anos 1930 e influência de uma ortodoxia liberal dedicada não apenas às questões de política econômica, mas à redefinição da própria ontologia humana e dinâmica social. Mais que uma ideologia, argumentam os autores, o neoliberaliemo compreende uma racionalidade, mecanismo de produção de uma nova sujeitividade e sujeito: o neosujeito, o "empresário de si mesmo" (1). Esta racionalidade espraiou-se pelas chamadas periferias capitalistas dependentes (dentre as quais se inscreve o Brasil) assumindo formas tanto mais violentas: como que obedecendo a uma "hierarquia global da desumanização", por sua vez capitaneada pelas oligarquias e burguesias locais, responsáveis pela "manutenção da ordem", isto é, pela redução e reserva da democracia aos mais ricos e pela restrição das possibilidades de autodeterminação e emancipação da maioria da população(2).
O relativo silêncio e invisibilidade que pautas como Arte, Lazer e Esporte têm recebido durante os processos eleitorais, segundo a frágil opinião deste blogueiro, resulta justamente desse processo de redução ontológica em que a econometria compreende a tecnologia que "dá a última palavra" sobre tudo e todos. Cabe aqui um adendo no sentido de que não é a racionalidade neoliberal que inaugura a redução ontológica; é ela apenas uma continuidade da Modernidade enquanto projeto "civilizatório", por meio do qual é possível verificar como colonialismo, escravidão e capitalismo, forças motrizes da Modernidade, estão a determinar uma reprodução social invariavelmente estruturada pelo racismo, classismo e sexismo. Posto isso, ao falar de neoliberalismo, referímo não apenas à forma como esta extenção da Modernidade se constitui como hegemônica, ainda que as mais variadas teses e tentativas de sua superação têm se multiplicado e constituído uma espécie de "reserva revolucionária do século XXI" dos assim chamados "comuns"(3).
Cuidadosamente edificada pela abstração dos filósofos, juristas, economistas, médicos e empresários, o Humano moderno foi, em primeiro lugar, dividido em corpo e mente. Depois hierarquizado com base em sua origem, sexo, raça e classe, para, por fim, ser transformado em mercadoria e, mais recentemente, consumidor. Ao revitalizar as teses antiga, a racionalidade neoliberal introduz uma "nova moral, "mentalidade", "governamentalidade" orientadora da política. E não é que ela deixa de se ocupar de outras esferas constitutivas do Humano, como a arte, o lazer e o esporte. Pelo contrário, a racionalidade é o elemento que dá forma e orienta a distribuição dessas práticas, estabelecendo nas regiões centrais e mais ricas das cidades os limites da "boa qualidade" e das experiências mais variadas; ao passo que nas regiões periféricas estabelece os limites das políticas e paisagens da ausência, de tal maneira que, em tais regiões, a discussão sobre políticas de arte, lazer e esporte acabam se tornando "triviais" em função de necessidades mais venais, como saneamento básico, saúde, trabalho.
Ainda nos anos 1930, historiador holandês, Johan Huizinga dizia que “em época mais otimista que a atual”, nossa espécie chegou a receber a designação Homo Sapiens. O culto ao iluminismo, positivismo e à ideia de progresso no século XVIII, por sua vez, fez nascer o Homo faber (4); designação que ainda hoje permanece como "paradigma da vez", muito embora a força de trabalho humana tem servido cada vez menos às novas engrenagens da produção e acumulação do capital. Sobre isso, o filósofo e teórico político camaronês, Achille Mbembe, especifica que se "ontem o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, hoje, a tragédia da multidão é não poder já ser explorada de todo, é ser objeto de humilhação numa humanidade supérflua, entregue ao abandono, que já nem é útil ao funcionamento do capital"(5).
Mas há uma terceira e tanto mais importante "faceta" humana que careceria de maior atenção e reconhecimento dos humanistas e utopistas contemporâneos, a qual Huizinga classificou como Homo ludens, isto é, a disposição humana para a criação, realização e participação em tudo aquilo que tenha por fundamento o lúdico e o jogo; estrutura que, embora possa estar presente em qualquer relação social, inclusive na política e economia ("jogos do poder"), diz respeito também ao caráter desinteressado das ações, realizações humanas e sua relação com o mundo. Mais que uma “essência” do lazer, do brincar e do praticar esporte, jogo e ludicidade são, conforme sugeriu o autor, a própria esteira do processo civilizatório, e talvez - e aqui vai mais uma opinião deste blogueiro - a chave da superação da própria crise civilizatória. Sendo assim, dar centralidade ao "espírito lúdico" não compreenderia restabelecer do Humano a sua complexidade original? Pergundo ao nobre leitor, correndo aqui o risco de enfatizar do referido "espírito" somente o seu caráter "instrumental" e "útil". Minha impressão é a de "que nos tem faltado corpo" e que a atual conjuntura de redução ontológica neoliberal se estabelece justamente devido a esta "falta" que, por agora, reduzo ao tempo para a arte, para o lazer e para o esporte. Se o espírito lúdico não fosse questão da mais alta importância para Huizinga, certamente ele a teria deixado de lado, posto que suas reflexões sobre este fenômeno são contemporâneas à ascensão do nazismo; regime que o condenou ao campo de concentração e à morte.
Embora a redução que faço do fenômeno seja inerente a sua representação pela linguagem, defendo aqui, reconhecendo a contradição, a necessidade de uma posição não-reducionista do Humano como uma chave para o "sucesso" de plataformas políticas. Mais do que isso, defendo a centralidade do espírito lúdico, bem como o direito à arte, ao lazer, ao esporte e, como disse o escritor e ativista franco-cubano, Paul Lafargue, seu direito à preguiça (6), como os verdadeiros fundamentos de um horizonte político. Com isso, automaticamente faço oposição à razão capitalista/neoliberal cujo foco é sempre tomar o corpo e a subjetividade humana como meio, condenando-o à alienação e à vida "produtiva" destituída de sentido.
Assumir "a causa do Homo Ludens" significaria posicionar-se não apenas ontológica, mas ideologicamente: pois se a redução da vida à energia de reprodução do capital fere profundamente a todos, tanto mais tem ferido as populações hierarquicamente rebaixadas, racializadas e empobrecidas no seio da Modernidade. Assim, é às populações sub-representadas no debate político que se deveria dedicar maior atenção e maior parte dessa plataforma política, visando resgatar-lhes o direito de viver uma vida para a além do limiar biológico, para além do ser simplesmente apostas dentro das estrategias políticas(7).
Opondo-se às propostas utilitaristas e politicamente verticalizadas, conforme tradicionalmente se tem feito, "a causa do Homo Ludens" teria por objetivo o fortalecimento das formas não produtivas de existência face à hegemonia da moral do trabalho como forma única de ser no mundo, seja como castigo, tal como nos ensina o Velho Testamento(8), ora como virtude ("imitação" da atividade divina), tal como nos ensinou Calvino(9). No mundo da valorização da "vida produtiva", o ócio, as relações desinteressadas e intrinsecamente motivadas, bem como as atividades artísticas, de lazer e esporte, só têm valor se representadas pela razão mercadológica e pelo valor-dinheiro. Este sistema já nos tem como reféns, e suas centinelas não cessam de nos dizer que "não há alternativa". Mas insisto: uma política de centralidade da ludicidade - ideologicamente orientada para a democratização radical dos espaços de sua manifestação (práticas artísticas, de lazer e esporte) pode ser encarada (imaginem) como um ato de semear, de distribuir sementes que, a seu tempo, nos trariam boas novas, novos horizontes e novas utopias que falaem de um mundo tanto mais humano.
O motivo da razão hegemônica obter tanto sucesso em sua política é que ela não é necessariamente contrária à possibilidade de os sujeitos viverem para além do limiar biológico, mas sim à forma como tal necessidade deve ser satisfeita. Para a razão neoliberal, a única fonte de "salvação" e "transcendência" possível no mundo encontra-se tão somente no próprio "indivíduo" que, por meio do próprio esforço, cálculo e planejamento, conquista o direito de gozar a vida. Nesse mundo, o Direito reduz-se à dimensão da propriedade privada, bem como à verificação da "justiça" a partir do resultado da competição entre os indivíduos. The winner takes it all, the loser has to fall como diz a canção(10). Uma vez contaminado pela mesma racionalidade, o Estado, em tese responsável pela garantia do direito à arte, ao lazer e ao esporte(11), quando não a reforça, atua como barreira e mecanismo de controle/repressão às expressões populares, a exemplo do massacre de Heliópolis(12) e tantos outros que aqui poderiam ser listados.
Vale sempre reiterar que Lazer e Esporte são direitos constitucionais, cuja garantia compete ao poder público, nas suas mais diferentes instâncias. O Artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, é ainda mais enfático ao estabelecer que tal direito deve ser assegurado com absoluta prioridade, uma vez que consiste uma das bases fundamentais do próprio direito à vida(13). Defendê-lo, portanto, significa opor-se à política da ausência e, invariavelmente, à razão neoliberal.
O quadro que se apresenta àqueles que pretendem defender o direito da maioria da população à arte, ao lazer, ao esporte, ao dolce far niente, evidentemente não é dos mais favoráveis. Pois apesar dessas esferas serem amplamente reconhecidas por seus "benefícios ao desenvolvimento", o nível de aderência da população de países do Sul Global a tais práticas é baixíssimo e determinantemente marcado por uma divisão internacional do trabalho que a encerra em jornadas de trabalho longas, exaustivas, precárias e de baixo salário. No Brasil, por exemplo, o número de praticantes de atividade física e esporte não ultrapassa os 30%, segundo aponta o último Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional(14). Razões para esta realidade não faltam, porém, conforme especifica o Relatório,  verifica-se que a discriminação de gênero, de cor/etnia e de classe segue sendo o principal determinante das desigualdades neste campo. Conforme descreve o documento, “em geral, o investimento público não tem como objetivo diminuir a desigualdade no acesso às práticas corporais entre os diferentes grupos sociais”; pelo contrário, a forma como a política tem sido empregada até aqui, tende aprofundar ainda mais estas desigualdades. Enquanto os jovens, sobretudo do sexo masculino, bem como as pessoas diretamente envolvidas com o esporte, são os grupos mais privilegiados pelas políticas, mulheres, idosos, crianças, não-atletas e grupos expostos a alta vulnerabilidade social, acabam ficando à sombra. A face desta desigualdade fica ainda mais nítida quando comparados os perfis sócio-demográficos.
Adolescentes entre 15 e 17 anos compõem o grupo que mais pratica atividade física ou esporte. Frequência que diminui significativamente na medida em que o grupo vai se aproximando da idade adulta. Homens adultos, contudo, praticam lazer e esporte quase 30% mais que as mulheres, as quais, por sua vez, têm cada vez menos chances de aderir a alguma atividade quanto menor o grau de escolaridade e quantidade de jornadas de trabalho a que são expostas. Ainda conforme o Relatório, verifica-se que pessoas com renda igual ou maior que cinco salários mínimos praticam duas vezes mais atividade física ou esporte que pessoas cuja renda não ultrapassa um salário mínimo. Semelhante diferença também se observa entre a população branca, que pratica 12% mais atividade física quando comparada à população negra. A isto se soma ainda o fato de que quanto mais vulnerável social e economicamente é o grupo, menor a sua mobilidade e chance de acessar a espaços e equipamentos de lazer e esporte. Com base nesse cenário, o Relatório reforça a “necessidade de incorporar à políticas de lazer e esporte ações afirmativas que favoreçam aos grupos tradicionalmente excluídos”.
Compreendendo que a garantia do amplo direito às possibilidades lúdicas, às artes, ao lazer e ao esporte não se restringe a uma questão distributiva, mas é fruto de uma disputa política e ideológica por ora vencida pela razão econômica vigente, concluo a primeira parte desta reflexão com três perguntas. É possível garantir o direito às possibilidades lúdicas sem que se enfrente de forma contundente o sistema capitalista e sem que se tenha que assumir posição ao lado da população historicamente privada de um direito humano tão fundamental? Escapando às alternativas tradicionalmente aplicadas de forma vertical e acrítica, não seria este o momento para a adoção de formas horizontalizadas de prática política, capazes de reconhecer das práticas culturais constituídas e protagonizadas pelos excluídos a sua legitimidade e vanguardismo(15)? Como restabelecer da arte, do lazer e do esporte o seu lugar de preponderância na luta de classes e contra a redução do Humano à coisa?
Volto ao tema em breve.


Referências:


(1) FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de janeiro: Zahar, 1973.
(2) DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, ed. 1, 2016.
(3) DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.
(4) HUIZINGA, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 4 ed., 2000.
(5) MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
(6) LAFARGUE, P. O direito à preguiça. A religião do capital. São Paulo: Kairós, 1983
(7) AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
(8) Gênesis 3:19.
(9) SILVA, E. C. O Conceito de Trabalho em Calvino. Monografia. Departamento de História. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 68p., 2004.
(10) The winner takes it all, ABBA, Benny Goran Bror Andersson / Bjoern K Ulvaeus.
(11) BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
(12) MAIA, F.; TRIGO, V. Massacre de Paraisópolis é o ápice das políticas anti-funk do Estado, 02 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.vice.com/pt_br/article/a35xy4/massacre-de-paraisopolis-e-o-apice-das-politicas-anti-funk-do-estado, acesso em 19 de janeiro de 2020.
(13) BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmara dos Deputados, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. DOU de 16/07/1990 – ECA. Brasília, DF., Art. 4º.
(14) Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional - Movimento é Vida: Atividades Físicas e Esportivas para Todas as Pessoas: 2017. – Brasília: PNUD, 2017.
(15) SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte, 1 ed, 2019.


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