A “doença” que há meio século assola o esporte

           Caro leitor, antes de mais, permita-me apresentar-me, e fazer alguns desvios, os quais considero importantes à esta breve reflexão. Longe de subestimar sua capacidade de interpretação, quero apenas estabelecer algumas marcações biográficas e conceituais, sem as quais nada do que aqui escrevo lhe fará sentido. A primeira marcação se refere ao autor do texto.

           Sou um homem negro de 36 anos de idade, que nasceu e cresceu nas periferias de Osasco e Carapicuíba, Grande São Paulo. Um ex-jogador de basquete e apaixonado pelo esporte que – talvez por isso – decidiu seguir carreira profissional em Educação Física.

            Minha experiência com o basquetebol teve início entre os anos 1997/98, época em que comecei a assistir às temporadas da NBA pela TV e a me encantar com o espetáculo esportivo. E aqui vai uma marcação conceitual.

          Por espetáculo esportivo, refiro-me a esta imensa infra-estrutura que conjuga manifestações atléticas competitivas, animadas por um complexo econômico e midiático capaz de comunicar imagens, signos e valores ao jovem da mais desconhecida periferia do mundo, arrebatando-o tal como um chamamento divino.

        Foi o que aconteceu comigo: inspirado por estas imagens e signos, comecei a praticar a modalidade apaixonada e intensamente. Hoje posso dizer com total segurança que esta foi minha primeira expressão de vontade de ser/estar no mundo, isto é, quando comecei a enfrentar o frio cortante da realidade, tendo como horizonte um “projeto de futuro” mais ou menos definido.

       O projeto era ambicioso, confesso, pois em exatos cinco anos me via chegando na maior liga de basquetebol do mundo, para jogar ao lado de Kobe Bryant e Shaquille O’Neal, ou, no mínimo, desfrutar do doce azar de jogar contra os caras.

        A esta vontade de ser/estar se somava um corpo de 1,91 cm, cheio de energia e experimentado nas artes da capoeira e da rua. Nada poderia interromper meu trajeto, imaginava. Evangélico fervoroso que era, levava comigo a certeza adicional de que o reino dos céus me aguardava após brilhante passagem pela NBA. Mas como o leitor já deve ter percebido, minha prova de realidade e aprendizagem sobre o funcionamento do mundo estava apenas começando. E diria que as quadras dos clubes sociais da burguesia paulista foram minhas primeiras “salas de aula prática” sobre as regras do jogo da vida.

       A cada treino, cada jogo, cada vitória e derrota, uma lição sobre os fundamentos do basquetebol. Mas a cada deslocamento da periferia para o centro, a cada pedido de carona no busão para poder ir treinar, um ensinamento sobre a minha posição social nesse mundo e sobre como as relações de classe e raça a define. Até aqui, embora já pudesse sentir em mim os sintomas da doença que afligia o esporte, faltava experiência e repertório cognitivo que pudesse me manter “imune” a ela.

        Uma vez contaminado, entendia que seguir praticando basquetebol, naquelas condições, seria o mais certo a se fazer. Afinal, uma trajetória esportiva cuja história vale a pena ser contada, pensava eu, “deveria” trazer no seu corpo as cicatrizes da superação meritória das dificuldades de ser pobre e negro. Tal como me diziam as imagens/mensagens de Jordan e Cristo, a soma de fé, vontade, perseverança e sacrifício me levariam, invariavelmente, à “redenção”. Era uma “questão matemática”, individual, não social, não histórica, tampouco racial.

        Fato é que eu não tinha vinte anos de idade quando, relutantemente, parei de jogar. As dores nos joelhos quase destruídos me apareceram como complicações crônicas da superexposição à doença do esporte. Por sorte, parei antes que algo pior me acontecesse; e num misto de tristeza e inconformismo, me pus a conhecer as razões intrínsecas e extrínsecas da saída precoce. Foi quando me deparei com a doença.

        Tempo-espaço do meu “tratamento”, a faculdade me deu as primeiras pistas, por meio das quais cheguei a cultivar uma espécie de "retorno revanchista" ao esporte, entendendo que o diploma de professor fazia de mim a “vacina” capaz de “curá-lo”, ou, pelo menos, ser a “substância de imunização” da experiência esportiva de outros jovens sonhadores. Embora as intenções fossem nobres, ao meu espírito quixotesco faltava um "Sancho" que me fizesse reconhecer a materialidade da vida.

        Ter acessado a textos sobre a Especialização Esportiva Precoce me ajudou a entender que eu era apenas um dentre milhares de jovens professores, que seguem semelhante jornada sem saber que muitas vezes serão submetidos a níveis ainda mais deletérios da doença, tornando-se dela uma espécie de agente propagador, cujo efeito se observa num pragmatismo e "darwinismo social" pouco afeito à fase de crescimento e desenvolvimento dos jovens aspirantes. Mas o que esses textos não me diziam, é o porquê desse grupo de jovens atletas, quase todo composto por pretos e brancos pobres, ser classificado como categoria de base. O que mais tarde compreendi foi que o sentido prático e mais perverso do termo – este convenientemente velado – se refere a produção de uma massa de aspirantes (por regra gratuitamente explorada) a compor uma “mão-de-obra excedente” ou, como diria Marx, um exército de reserva. Exército sobre o qual se sustenta a face externa do espetáculo esportivo.

        Embora compreenda a sua menor porção, o espetáculo é do fenômeno esportivo contemporâneo a imagem que contemplamos pela lente da televisão, quase sempre prostrados de fascínio e anestesiados diante da economia e edição das imagens. Imagens por meio das quais se constitui a “membrana”/ideologia protetora do vírus causador da doença do esporte. Ao remove-la (o que só foi possível por meio das ferramentas da crítica social) pude acessar à “estrutura nuclear” do esporte e verificar que o grau de contaminação em que este se encontra, faz com que ele assuma a própria forma da doença - a qual se apresenta como mecanismo de alienação do tecido social. Este mecanismo é responsável por um processo de captura das células jovens por meio do encantamento, às quais são submetidas a um processo sacrificial de seleção e reificação dos chamados atletas profissionais; células aparentemente saudáveis e parcialmente responsáveis pelo ciclo de cooptação, ao mesmo tempo que substancialmente frágeis e substituíveis.

        Caro leitor, acredite, houve um tempo em que o esporte foi portador de propósitos mais “nobres” e “saudáveis”. A ele cumpria, por exemplo, a tarefa de “reespiritualização” dos homens pela prática. Este não é o momento em que revisitaremos esta corrente de pensamento, pois seria necessário também apontar os diversos problemas inerentes aos seus postulados. Por agora, importa registrar que nesta corrente se podia identificar certa centralidade de noções de Ser Humano, Igualdade e Justiça que davam às práticas esportivas organizadas um caráter “civilizador” [1]. A epidemia neoliberal do século XX, no entanto, marcará a morte desta utopia ou projeto político.

        De fato, a história do esporte moderno nunca deixou de ser a história da sua instrumentalização político-ideológica. Ocorreu que a partir dos anos 1970 o uso (e abuso) desta infra-estrutura assumiu novos contornos e objetivos [2]. A face neoliberal do capitalismo, também representada pela ideologia da globalização, inundou o mundo, capturou governos, seduzindo culturas inteiras com a promessa de uma liberdade que se materializaria (sobretudo) através do acesso dos cidadãos e sub-cidadãos às mercadorias. “Mundo livre” passava a ser tudo aquilo que estivesse submetido às leis “naturais” de um mercado desregulado [3].

        Não foi por acaso que Michael Jordan apareceu flutuando na TV aberta brasileira. Aquela imagem de um afro-americano habilidoso, suspenso no ar, indo em direção ao seu objetivo, compunha todo um cenário histórico-político e cultural a embalar os sonhos de inclusão do nacional-periférico (Brasil) ao “mundo de fato”, isto é, o mundo das coisas. Espólio da ideologia que saiu vitoriosa da Guerra Fria, o esporte se tornou não só uma das principais plataformas de circulação de imagens e mercadorias, mas da hegemonização dos interesses de conglomerados econômicos e privados em detrimento dos interesses públicos. Conforme bem testemunhamos durante os anos 2014 e 2016, aos pés do entusiasmo político-empresarial em relação aos megaeventos, o que se estendeu foi um imenso vale de descontentamento e revolta popular. O que acredito ter sido, em grande medida, uma primeira reação imunológica do tecido social à epidemia neoliberal.

       Aquilo a que nos anos 1980 se chamou profissionalização e globalização do esporte no Brasil, na prática, representou não mais que a determinação das imagens e do dinheiro sobre os corpos e sonhos de ser. Tradução desta hegemonia, o espetáculo esportivo contemporâneo compreende a afirmação espetacular de uma ausência de política de esporte responsável pela produção privada de corpos suficientemente precarizados [4], coisificados e reduzidos à condição de infra-humanidade [5], sobre os quais se sustenta o processo de acumulação do capital, que é a doença propriamente dita.

        A disputa jurídica pela indenização às famílias dos dezesseis jovens atletas do Flamengo, que em 2019 foram atingidos pelo incêndio no alojamento em que moravam, inscreve-se entre os exemplos mais emblemáticos da situação a que me referi acima. Em um dos últimos capítulos do processo, em que o Ministério Público do Trabalho moveu ação pela penhora de cem milhões de reais do Clube como garantia de indenização às famílias dos atletas, a declaração de indeferimento proferida pelo juiz baseou-se no argumento de que “a atividade dos jovens de categoria de base de clubes de futebol [dez dos quais morreram] está inserida no inciso IV, do artigo 3º, da Lei Geral do Desporto, caracterizada por formação e com caráter recreacional ou recreativo [...] Posto isso, declaro a incompetência material da Justiça do Trabalho para julgar a matéria relacionada aos jovens em formação desportiva vitimados nas instalações da entidade de prática desportiva ré” [6]. Mais do que advogar a favor da Instituição Esportiva, esta sentença trouxe à público a conveniente confusão a que atletas de categorias de base estão submetidos no Brasil. Pois o que se convencionou chamar "formação esportiva", em larga medida se confunde com um processo de extração (por regra não-remunerada) de mais-valia absoluta. A conveniência encontra-se no fato de que clubes como o Flamengo, em tese, não são empresas, mas associações “sem fins lucrativos”. “Quer dizer, então, que meu filho estava se divertindo? [...] ele era cobrado como um trabalhador. Se chegasse atrasado aos treinos, recebia punição”, declarou em entrevista o Sr. Cristiano Esmério, pai do goleiro Christian, que morreu aos 15 anos [7].

        Passado quase dois anos da tragédia, as famílias ainda aguardam desfecho de um processo em que a parte responsabilizada se apresenta como um adversário impessoal, sem rosto, institucional, ao mesmo tempo que dispõe dos mais variados recursos para fazer valer seus interesses, doa a quem doer. “Os dirigentes decidiram arrastar nosso sofrimento”, diz o Sr. Ermério, que prossegue chamando a atenção para o seguinte fato: “o Flamengo gasta 200 milhões para contratar jogadores. E eu vou chorar a vida inteira pelo meu filho [...] o recado que os dirigentes passam é que, para o clube, a vida dos nossos filhos não vale nada” [8]. Contundente, o protesto do Sr. Ermério baseia-se no fato de que, a despeito da tragédia, o investimento milionário do Clube em contratações seguiu à plenos pulmões, numa clara demonstração de que não há caso de vida ou morte capaz de interromper, quiçá diminuir as luzes do espetáculo.

        Este cenário demonstra que o esporte contemporâneo, sobretudo na figura de seus agentes políticos, dirigentes e financiadores, tal como qualquer outra instituição representante dos interesses do capital, se impõe a partir de uma mediação jurídica sempre mais dedicada à proteção da propriedade privada e de seus detentores.

        Para concluir, acrescento um último exemplo, também relacionado ao futebol brasileiro, denominado fábrica de ilusões. Segundo o jornalista Rodrigo Capello, o futebol profissional contemporâneo se constitui como um conjunto de discursos e imagens, responsáveis pela reprodução convenientemente invisibilizada de um perverso sistema de distribuição de renda, que faz com que quatro em cada cinco atletas ganhe até R$ 1. 000,00 reais ao mês. E embora salários acima de R$ 50. 000,00 existam, esses valores contemplam não mais que 0, 8% dos mais de 22.000 atletas inscritos na CBF, até o ano de 2016. Com base neste cenário, Capello faz a seguinte observação: “o sistema esportivo vigente está doente” [9]. Afirmação da qual compartilho, considerando que sua força também está no seu inverso, isto é: o esporte não está doente. O atual sistema esportivo goza de plena saúde, uma vez que orientado por uma racionalidade e forma de acumulação que sabidamente se sustenta da superexploração, da desigualdade e da anomia do grupo explorado.

        Ainda nos anos 1960, o psiquiatra, filósofo e ativista franco-martinicano, Frantz Fanon, advertiu que a concepção capitalista de esporte é completamente contrária a que deveria existir em um país subdesenvolvido. Ao se referir especificamente aos jovens dos países periféricos, ponderou que “o homem político africano não deveria se preocupar em fazer esportistas, mas homens [e mulheres] conscientes, que podem também ser esportistas”. Uma vez integrado à vida social, o esporte deveria, segundo Fanon, auxiliar na constituição simbólica do nacional, e compreender não a formação de meros representantes nacionais, mas a formação de cidadãos conscientes e imunes ao que entendeu ser o “apodrecimento do esporte, provocado pelo profissionalismo e comercialismo”. E conclui dizendo que o esporte não deveria ser mera distração “oferecida à burguesia das cidades”, mas constituir-se terreno fértil à possibilidade de nos fazer “compreender, a todo momento, o que se passa entre nós” [9].

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Neilton Ferreira Junior é Doutorando pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos Olímpicos (USP) e da Academia Olímpica Brasileira. Estuda as Questões Raciais e do Trabalho no Esporte Brasileiro.


[1] COUBERTIN, Pierre. Olimpismo – Seleção de textos. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2015, p. 523.

[2] BROHM, Jean-Marie; PERALMAN, Marc; VASSORT, Patrick. A ideologia do esporte-espetáculo e suas vítimas. In: Le Monde Diplomatique, 01 de junho de 2004. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-ideologia-do-esporte-espetaculo-e-suas-vitimas/, acesso em 23 de março de 2020.

[3] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 22.

[4] CAMILO, Juliana A. Oliveira., RABELO, Ivan Sant’ Ana. Precariedade e invisibilidade do trabalho dos atletas de alto-rendimento. In: RUBIO, Katia; CAMILO, Juliana A. Oliveira (Orgs). Psicologia Social do Esporte. São Paulo: Laços, p. 105-120, 2019.

[5] GILROY, Paul. Entre campos: nações, cultura e o fascínio da raça. São Paulo: Annablume, 2007, p. 77.

[6] Incompetência Material: Justiça do Trabalho não julga ação de atleta de base contra clube. In: Consultor Jurídico. 21 de outubro de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-21/justica-trabalho-nao-julga-acao-atleta-base-clube. Acesso em 25 de abril de 2020.

[7] BURLÁ, Leo. Flamengo vence ação e evita bloqueio de 100 milhões por incêndio no Ninho. In: UOL, 21 de outubro de 2019. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2019/10/21/fla-vence-acao-e-evita-bloqueio-de-r-100-milhoes-por-incendio-no-ninho.htm, acesso em 10 de maio de 2020.

[8] PIRES, Breiller. Flamengo, bem cotado nos gramados e à sombra da maior tragédia de sua história. In: El País, 29 de novembro de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/21/deportes/1574351902_719707.html, acesso em 11 de maio de 2020.

[9] FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 161.

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